quinta-feira, 28 de junho de 2012

TRADIÇÃO X MODERNIDADE


Como as festas tradicionais do interior sobrevivem aos novos tempos
 
 
Por P.R. Barbosa

Houve um tempo em que as festas no Arquipélago do Bailique aconteciam de ano em ano. Eram as famosas festas de ano que, de tão populares, faziam parte do calendário festivo daquele povo. Era também um momento único de rever os amigos, familiares distantes ou, simplesmente, “arrastar o pé”. O fato é que as festas tradicionais, em sua maioria religiosa e feitas para homenagear os santos padroeiros, eram eventos únicos de socialização naquela região tão isolada.
Realizada quase sempre em residências, a organização contava com o apoio de toda a comunidade. Passavam-se dias ou até semanas festejando. Seu Miguel Pacheco (86), que vivenciou o início de muitas festas tradicionais no arquipélago, nos relata que as pessoas amanheciam e anoiteciam dançando. Famílias inteiras se mudavam para os locais da festa. Existia, inclusive, a preocupação da organização em disponibilizar um espaço próximo ao salão para que fossem amarradas as redes, onde as crianças pudessem dormir. Assim, era cômodo para as mães divertirem-se e cuidarem de suas "crias" ao mesmo tempo. Seu Miguel conta que muitas famílias traziam, além das vestimentas novas para estrear na festa, mantimentos para o sustento, já que muitas festas não ofereciam comida para os convidados durante todos os dias do festejo.
Nos primeiros tempos, as noites festivas eram iluminadas por lamparinas à querosene, depois foi a vez dos lampiões a gás, geradores, e atualmente muitas festas já contam com energia elétrica pública da usina termoelétrica da região.
As músicas, com temas bastante caboclos, eram cantadas ao vivo com acompanhamento de clarinetes. Os músicos não eram profissionais e dificilmente sabiam as notas das melodias, mas ninguém reclamava. Emocionado, Seu Miguel chegou a entoar alguns versos que, apesar da idade, permanecem vivos em sua memória. Depois chegaram as vitrolas à bateria e os discos de vinis. O repertório então começou a diversificar-se, até a entrada em cena das aparelhagens de som. Até hoje, apesar de muitas festas já apresentarem atrações ao vivo, com bandas ou cantores solos, muitas ainda continuam sendo tocadas apenas por som mecânico. Só que a música, esta passou de ritmo caboclo para a febre do tecno-melody, funk, rock e outros tantos ritmos da atualidade.
Ano passado, estivemos acompanhando a realização da Festividade de São João Batista, que há mais de meio século vem sendo organizada pela Família Barbosa na comunidade de Igarapé dos Macacos do Bailique. A festa foi realizada nos dias 24, 25 e 26 de junho e contou com a participação de centenas de brincantes. Entre as atrações, pudemos conferir a alvorada de fogos anunciando o início da festividade, a levantação do mastro com a bandeira do santo que simboliza a abertura oficial do evento, a festa dançante, o leilão com donativos ofertados pela comunidade, bingo, culto religioso e derrubada do mastro marcando o final do evento.
Os organizadores da festa nos relataram que, devido ao grande contingente que a festa começou a receber nos últimos anos, foi preciso construir um centro comunitário com recursos e mão-de-obra da própria comunidade. Apesar da grande dimensão do espaço, o centro ficou pequeno para tantas pessoas que ali compareceram nos três dias de festa.
Fazendo uma relação dos relatos do Seu Miguel Pacheco sobre as primeiras festas com o que presenciamos na última edição da Festividade de São João Batista, ficou evidente a grande influência que estas festas tradicionais receberam e continuam recebendo da modernização da sociedade. 
Entre tantas diferenças, pudemos observar o pouco espaço destinado às atividades profanas e culturais na programação. A ausência das famílias no ambiente da festa também foi algo marcante. E também o tempo de duração das noites festivas que não se prolongavam até o amanhecer, como ocorria antigamente. Segundo os coordenadores, até dois anos atrás a festa não tinha tempo para parar e chegava até o raiar do dia, só que no ano passado casos lamentáveis de violência ocorreram durante a festividade o que levou os organizadores a cumprirem fielmente as determinações legais para poderem contar com o trabalho dos policiais e oferecerem segurança aos seus brincantes. Desde então, as noites festivas encerram-se sempre às 03 h da manhã. Os coordenadores informaram que devido aos casos de violência, as famílias estão se afastando das festas tradicionais. E isso foi verificado ano passado quando o quantitativo de brincantes foi muito inferior aos outros anos, conforme avaliação da coordenação.
Hoje o principal público participante das festas tradicionais é jovem que, em sua maioria, não liga para a tradição. Com o exagerado consumo de álcool e outras drogas, a violência urbana está migrando da cidade para os interiores e chegando às festas tradicionais. As festas que antes serviam para unir as pessoas, hoje estão sendo usadas como ponto de encontro de desafetos. As roupas novas que eram o trunfo para o glamour e para a conquista de seus pares já não impressionam mais, principalmente, quando o que conta é o uso da força e da arma. E a tradição cultural, que representa as raízes históricas de um povo, está cedendo lugar para uma simples balada.
 Este ano, a Festividade de São João Batista não foi realizada em função do falecimento recente de um dos ancestrais daquela comunidade e personagem desta matéria, o Sr. Miguel Dias Pacheco, cujo texto é dedicado à sua memória.