Como as festas tradicionais do interior sobrevivem aos
novos tempos
Por P.R. Barbosa
Houve
um tempo em que as festas no Arquipélago do Bailique aconteciam de ano em ano.
Eram as famosas festas de ano que, de tão populares, faziam parte do calendário
festivo daquele povo. Era também um momento único de rever os amigos,
familiares distantes ou, simplesmente, “arrastar o pé”. O fato é que as festas
tradicionais, em sua maioria religiosa e feitas para homenagear os santos padroeiros,
eram eventos únicos de socialização naquela região tão isolada.
Realizada
quase sempre em residências, a organização contava com o apoio de toda a
comunidade. Passavam-se dias ou até semanas festejando. Seu Miguel Pacheco (86),
que vivenciou o início de muitas festas tradicionais no arquipélago, nos relata
que as pessoas amanheciam e anoiteciam dançando. Famílias inteiras se mudavam
para os locais da festa. Existia, inclusive, a preocupação da organização em
disponibilizar um espaço próximo ao salão para que fossem amarradas as redes,
onde as crianças pudessem dormir. Assim, era cômodo para as mães divertirem-se
e cuidarem de suas "crias" ao mesmo tempo. Seu Miguel conta que muitas famílias
traziam, além das vestimentas novas para estrear na festa, mantimentos para o
sustento, já que muitas festas não ofereciam comida para os convidados durante
todos os dias do festejo.
Nos
primeiros tempos, as noites festivas eram iluminadas por lamparinas à
querosene, depois foi a vez dos lampiões a gás, geradores, e atualmente muitas
festas já contam com energia elétrica pública da usina termoelétrica da região.
As
músicas, com temas bastante caboclos, eram cantadas ao vivo com acompanhamento
de clarinetes. Os músicos não eram profissionais e dificilmente sabiam as notas
das melodias, mas ninguém reclamava. Emocionado, Seu Miguel chegou a entoar
alguns versos que, apesar da idade, permanecem vivos em sua memória. Depois
chegaram as vitrolas à bateria e os discos de vinis. O repertório então começou
a diversificar-se, até a entrada em cena das aparelhagens de som. Até hoje,
apesar de muitas festas já apresentarem atrações ao vivo, com bandas ou
cantores solos, muitas ainda continuam sendo tocadas apenas por som mecânico.
Só que a música, esta passou de ritmo caboclo para a febre do tecno-melody,
funk, rock e outros tantos ritmos da atualidade.
Ano
passado, estivemos acompanhando a realização da Festividade de São João
Batista, que há mais de meio século vem sendo organizada pela Família Barbosa
na comunidade de Igarapé dos Macacos do Bailique. A festa foi realizada nos
dias 24, 25 e 26 de junho e contou com a participação de centenas de
brincantes. Entre as atrações, pudemos conferir a alvorada de fogos anunciando
o início da festividade, a levantação do mastro com a bandeira do santo que
simboliza a abertura oficial do evento, a festa dançante, o leilão com
donativos ofertados pela comunidade, bingo, culto religioso e derrubada do
mastro marcando o final do evento.
Os
organizadores da festa nos relataram que, devido ao grande contingente que a
festa começou a receber nos últimos anos, foi preciso construir um centro
comunitário com recursos e mão-de-obra da própria comunidade. Apesar da grande
dimensão do espaço, o centro ficou pequeno para tantas pessoas que ali compareceram
nos três dias de festa.
Fazendo
uma relação dos relatos do Seu Miguel Pacheco sobre as primeiras festas com o
que presenciamos na última edição da Festividade de São João Batista, ficou
evidente a grande influência que estas festas tradicionais receberam e
continuam recebendo da modernização da sociedade.
Entre
tantas diferenças, pudemos observar o pouco espaço destinado às atividades
profanas e culturais na programação. A ausência das famílias no ambiente da
festa também foi algo marcante. E também o tempo de duração das noites festivas
que não se prolongavam até o amanhecer, como ocorria antigamente. Segundo os
coordenadores, até dois anos atrás a festa não tinha tempo para parar e chegava
até o raiar do dia, só que no ano passado casos lamentáveis de violência
ocorreram durante a festividade o que levou os organizadores a cumprirem
fielmente as determinações legais para poderem contar com o trabalho dos
policiais e oferecerem segurança aos seus brincantes. Desde então, as noites festivas encerram-se sempre às 03 h da manhã. Os coordenadores
informaram que devido aos casos de violência, as famílias estão se afastando
das festas tradicionais. E isso foi verificado ano passado quando o
quantitativo de brincantes foi muito inferior aos outros anos, conforme
avaliação da coordenação.
Hoje
o principal público participante das festas tradicionais é jovem que, em sua
maioria, não liga para a tradição. Com o exagerado consumo de álcool e outras
drogas, a violência urbana está migrando da cidade para os interiores e
chegando às festas tradicionais. As festas que antes serviam para unir as
pessoas, hoje estão sendo usadas como ponto de encontro de desafetos. As roupas
novas que eram o trunfo para o glamour e para a conquista de seus pares já não impressionam
mais, principalmente, quando o que conta é o uso da força e da arma. E a
tradição cultural, que representa as raízes históricas de um povo, está cedendo
lugar para uma simples balada.
Este ano, a Festividade de São João Batista
não foi realizada em função do falecimento recente de um dos ancestrais daquela
comunidade e personagem desta matéria, o Sr. Miguel Dias Pacheco, cujo texto é
dedicado à sua memória.