Em 2008, quando eu e vários professores do Brasil
estávamos em um hotel de Brasília para receber nossos prêmios de Professores do
Brasil, uma conferencista nos falava que ela iria torcer para que aquele prêmio
não nos tapasse os olhos para os problemas da educação brasileira e que aquela
festa não teria muito sentido se não viesse acompanhada de uma reflexão
profunda sobre o momento porque passava a nossa profissão no país. Muitos
colegas ficaram chateados, pois entendiam que ninguém tinha o direito de "estragar"
aquele momento. Na verdade, ela é que estava certa: até hoje temos muito pouco
a comemorar quando se trata de educação neste país. E nenhum prêmio, qualquer
que seja a sua importância, pode mascarar a dura e triste realidade de quem
está diariamente exercendo esta tão importante e desvalorizada profissão em
sala de aula.
Mas foi preciso um choque de realidade para
entender a mensagem. Na volta para casa e para a sala de aula, depois de alguns
dias, ouvi um gemido de um aluno que, isolado e triste num canto da sala
sussurrava baixinho sua grande dor. Cheguei ao seu lado e perguntei-lhe o que
estava acontecendo, mas o garoto se esquivou em me responder, porém seu irmão
que estava do lado contou que era o pé dele que estava ferido. Pedi então que
retirasse o sapato para que eu pudesse olhar o ferimento. Mas, novamente, o
menino recusou-se a me mostrar. Disse-me que não era nada e que estava tudo
bem. Sabendo que aquele aluno estava me escondendo algo, peguei suas pernas e
comecei a desamarrar os calçados. Foi então que me deparei com o estado
preocupante daquele menino. Dentro daqueles velhos e empoeirados sapatos de
borracha, surgiram seus pés praticamente em carne viva. Seus ferimentos eram
tão fortes que algumas partes já estavam apodrecendo. Sem condições e sem
material na escola para cuidar daquele ferimento, pedi à direção da escola para
levar o aluno até sua casa. Mas foi aí que veio a parte mais triste dessa
história. O menino se recusava a todo custo a ir para sua casa, dizia para
esperar mais um pouco. E eu não entendia como aquele menino, sofrendo com
aquela dor, insistia em ficar ali na escola. Passado algum tempo, ele veio até
mim e perguntou se a merenda ainda ia demorar. Aí então comecei a entender o
que estava acontecendo. Corri até a cozinha, mas as merendeiras me disseram que
naquele dia não ia haver lanche porque a merenda da escola havia acabado.
Peguei aquele garoto pelos braços e levei-o até sua casa. No caminho, parei em
uma panificadora e paguei-lhe um lanche. Olhando aquele menino devorar aquela
merenda, mil coisas me passavam pela cabeça e então percebi o quanto somos
cegos para as realidades deste mundo. E que, enquanto professores, ignoramos ou
não percebemos muita coisa à nossa volta.
Naquele dia, somente naquele dia, já no final do
ano, é que foi descobrir que eu tinha dois alunos que moravam com sua mãe em um
barraco pequenino em outro bairro da cidade. E que estes mesmos meninos levavam
quase duas horas, à pé, para chegar à escola. E, muitas vezes, suas únicas
refeições era a merenda servida no colégio. E que, aquela ferida nos pés
daquele garoto era muito mais do que calos. Era a luta de uma criança tentando
sobreviver, querendo um lugar ao sol, carregando nas costas um fardo tão
pesado, sem ter o direito de sentir dor. Uma dor que não é dele. Uma dor que
ele não tinha culpa de sentir. Esquecido das políticas públicas desse país, mas
presente nas estatísticas de repetência e evasão escolar, que os nossos
gestores insistem em esconder.
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